Não
esperava, para ser franco, que algumas das minhas predições, ou
antevisões ancoradas na lógica, não na bola de cristal, se cumprissem
tão depressa. Eis aí. Na reunião desta segunda com os governadores e
prefeitos de capitais — depois de se encontrar com a Rosa Luxemburgo e o
Rimbaud das catracas do Movimento Passe Livre (ver post) —,
com ar abatido como nunca, com a aparência de quem tem passado noites
insones, com semblante verdadeiramente deprimido, a presidente Dilma
Rousseff fez uma proposta estúpida, esdrúxula e inconstitucional: a
realização de um plebiscito para que o povo decida se quer ou não uma
Constituinte exclusiva para votar a reforma política. No primeiro artigo desta
série “Por que digo ‘não’”, antevi que a pressão das ruas —
potencializada por uma cobertura jornalística, especialmente da TV, que
considero irresponsável — submeteria o processo político a uma torção à
esquerda. Eis aí. Constituinte exclusiva, minhas caras, meus caros, foi o
caminho encontrado pelos bolivarianos para aplicar um “by-pass” nos
limites impostos em seus respectivos países pelos Poderes Legislativo e
Judiciário. Até o caldo de cultura é o mesmo, com acusações,
frequentemente verdadeiras, de que os Poderes da República estão tomados
por corruptos e por grupos que só pensam nos próprios interesses.
A
Constituinte exclusiva é, diga-se, o caminho apontado pelo “Foro de São
Paulo” a seus filiados para que se criem as condições para a “verdadeira
democracia”. As ruas estão a pedir serviços públicos mais eficientes,
menos corrupção, aplicação mais responsável do dinheiro público? Tudo é
muito justo! Ao mesmo tempo, fica claro — e isso é exaltado por alguns
tolos da imprensa como se fosse algo positivo —, os que estão nas ruas
não confiam nos políticos, nos partidos e na própria política. Muito
bem! Quem, então, vai operacionalizar a mudança? Esse é o tema deste
terceiro capítulo. Antes, preciso fazer algumas considerações.
No segundo capítulo,
lembro que o Brasil está submetido, há dez anos, a um ataque
sistemático à ordem democrática e às instituições, que tiveram o seu
prestígio abalado. Passou-se a considerar que tudo vale a pena se a
causa é boa! Esse é o caminho da barbárie, não da civilidade. Mais: as
esquerdas converteram seus aparelhos em meras fontes de captação de
dinheiro público. As oposições foram incapazes de construir valores
alternativos. Sob o manto da propaganda, no entanto, também havia
descontentamentos que não tinham como se expressar. Agora se revelam —
potencializados, reitero, por uma cobertura jornalística servil à
suposta vontade das ruas. Os tontos dizem que é coisa da “direita”. Não
é, não! Boa parte do encantamento basbaque com a “voz do povo” é herança
do hipomarxismo universitário. De resto, cumpre lembrar que as
primeiras manifestações eram escancaradamente conduzidas por grupos de
extrema esquerda.
Será
que digo “não” ao povo na rua? Nããão, Gafanhoto!!! Digo “não” aos
métodos; digo “não” à noção essencialmente equivocada de que maiorias ou
minorias podem impor aos outros a sua agenda; digo “não” à convicção de
que o espaço público não é a ágora onde as divergências se encontram,
mas o espaço da imposição. Um movimento, tenha ou não uma pauta ou um
centro organizador, que fecha, com grupos de 500 a mil pessoas, todas as
estradas de São Paulo e isola um aeroporto, como aconteceu na semana
passada, não tem contribuições a dar à democracia. Espero que Dilma
esteja na segunda metade de seu último mandato e torço para que o PT
seja derrotado — desde que não seja para algo ainda pior (e existe!) —,
mas ela não é Muamar Kadafi, e os que tomam as praças não são
libertadores de Benghazi. Até porque aqueles libertadores, como aqui se
anteviu, eram carniceiros de Benghazi. Em convulsões revolucionárias,
parece ocioso alguém defender o direito das pessoas à rotina. Ocorre que
nós não estamos numa convulsão revolucionária. Os métodos que rejeito
num adversário não me servem. Não endosso e jamais endossarei, como
escrevi aqui, o clamor por democracia direta ou pela instituição no país
de mecanismos que a tanto conduzam se aprovados. Se e quando tal pleito
sair vitorioso, estaremos todos à mercê da ditadura de minorias
organizadas.
Volto ao ponto
O modelo adotado pelo petismo nestes 11
anos de governo — e, para tanto, concorreu a conjuntura internacional —
serviu para encobrir boa parcela das incompetências do partido, muitas
delas tratadas, convenhamos, como verdadeiras obras- primas por setores
da imprensa. Não me aterei a detalhes, sobejamente conhecidos. Ocorre
que os ventos mudaram, e o acúmulo de erros começa a cobrar a sua conta.
Convém, no entanto, não tomar desde já o alarido como antecipação do
resultado das urnas de 2014. Marina Silva, certamente, dado o espírito
que vaga por aí, é a única beneficiária por esse movimento porque ela
não tem partido, mas “rede”; ela não é política do tipo pragmático, mas
“sonhático”; ela não é nem de situação nem de oposição, mas de posição….
Convém lembrar, ademais, que, até agora, há muito pouco pobre na rua,
quase nada. Os perfis divulgados pelos institutos de pesquisa certamente
estão provocando uma enlouquecida comichão em Lula para tentar reeditar
o seu discurso do arranca-rabo de classes. Atenção, minhas cara, meus
caros!
Eu
digo “não” ao que vai por aí porque é grande o risco — e já começou a
acontecer — de o governo se tornar mais permeável do que já é hoje aos
sedizentes “representantes do povo” que nada representam. Pensem um
pouquinho: por que os porta-vozes do Passe Livre estiveram ontem com
Dilma? Que conceito de democracia ou representação justifica o seu
encontro com a presidente? “Ah, eles são a novidade; a política, hoje em
dia, não se dá mais nos partidos…” Ora, pode não se dar só nos
partidos; pode não se limitar apenas ao Parlamento. Na verdade, há muito
tempo é assim. A política nunca foi monopólio, em lugar nenhum do
mundo, de políticos profissionais.
À
medida que Dilma — ou qualquer governante — levar para dentro do
Palácio a miríade de sindicatos e movimentos sociais, submetendo-se à
sua vontade militante, o que desaparece é o governo. A educação
brasileira, especialmente no ensino fundamental e médio, é uma lástima.
Mas vá tentar implementar métodos de qualificação da mão de obra e de
avaliação de desempenho para ver. Os sindicatos vão às ruas. Param a
Paulista. O PT demorou quase dez anos para dar início ao processo de
privatização dos aeroportos porque refém de grupos ideológicos. Existe
quase um estado de guerra entre proprietários rurais e índios no Mato
Grosso do Sul — e em outras regiões do país — porque a Funai se tornou
um aparelho dos autoproclamados defensores de índios.
No esforço
desesperado de sair das cordas, o governo Dilma tende a ser ainda mais
servil àqueles mesmos que, até agora, impediram as reformas necessárias.
“Ah, mas então ela vai se danar porque o descontentamento está aí.”
Notem bem: num regime democrático, é normal que os que se opõem às
políticas oficiais se manifestem. Situação anômala era aquela que
vivíamos antes, de aparente quase unanimidade.
A saída
política encontrada por Dilma, está claro, se deu pela esquerda, com
essa bobagem inconstitucional que é a Constituinte exclusiva, tese
antiga de Lula, que honra as melhores tradições bolivarianas. O
movimento de rua parece estar em refluxo, o que não quer dizer que não
possa voltar mais adiante e mais forte. Como será, no entanto, que os
muito pobres do Bolsa Família veem esse processo? E os pobres agora
chamados de classe média? Muitos deles têm sua TV de tela plana,
celular, um carrinho comprado em trocentas prestações, uma
minichurrasqueira elétrica… Mas o esgoto corre a céu aberto, o hospital
mais próximo é uma porcaria, e a escola dos filhos não funciona.
Continuará disposto a dar um voto de confiança ao PT, talvez a Lula? Não
sei. Mas sei que a resposta encontrada pelo petismo e imposta a Dilma
torna o país ainda mais servil aos que não representam ninguém..